sábado, abril 26, 2008

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quinta-feira, setembro 07, 2006

O “CASO MATEUS” – ABORDAGEM ALTERNATIVA

Apesar de ter actuado em alguns jogos com um jogador que supostamente não poderia ter sido inscrito, o Gil Vicente dentro do relvado, provou ser merecedor do direito a participar na BWIN LIGA, e isto é um facto que ninguém poderá escamotear.
Desde logo, a liga aceitou provisoriamente – e bem: as decisões dos tribunais sobrepõem-se às de qualquer outra autoridade – a inscrição do jogador de acordo com o despacho do juiz do TAF de Braga. Assim, estando o jogador regularmente inscrito e tendo o Gil Vicente alcançado os pontos necessários para permanecer no principal campeonato Português, em termos de verdade desportiva, é indubitável que a razão tende a propender para o Gil Vicente.

I

Em causa estão regras “estritamente desportivas”, as quais, parece ser consensual, não podem ser dirimidas nos tribunais comuns.
Em primeiro lugar, dos conflitos que surjam no plano “estritamente” desportivo, estando vedado aos litigantes o acesso aos tribunais comuns, sempre se poderá deduzir que deverão ser decididos em tribunais especiais. Acontece que, nem a Comissão disciplinar da liga, nem o conselho de justiça da FPF poderão ser considerados tribunais, porquanto não preenchem o âmbito legal adstrito ao poder judicial no quadro da Constituição.
Em segundo lugar, há que investigar qual o elemento teleológico das regras “estritamente” desportivas. Pode dizer-se que visam organizar e regulamentar as competições desportivas, sendo que estas regras assentam transversalmente no Princípio da verdade desportiva. Como já vimos supra, se respeitarmos este princípio, talvez possamos concluir que o Gil Vicente tem razão.

II

Perante o acto administrativo que recusou a inscrição do jogador Mateus, o Gil Vicente invocou que, caso fosse confirmada por sentença a existência de um contrato de trabalho simulado (simulação relativa) – não obstante reconhecer-se que nos termos do Código do Trabalho, as consequências jurídicas da simulação do contrato, passariam pela sua convalidação até ao momento da declaração, o que em termos práticos ainda complicaria mais este processo – entre o Clube de Futebol de Lixa e esse jogador, então a inscrição deveria ter sido aceite.
1– A decisão sobre contratos de trabalho simulados é da competência dos tribunais de trabalho, não é uma questão desportiva, muito menos “estritamente” desportiva;
2 – Ainda que entendêssemos que ao Gil Vicente está-lhe vedado o acesso aos tribunais comuns em questões “estritamente” desportivas, nunca se poderá concluir que pelo facto de ter aderido a associações que regulam o futebol, não terá por isso abdicado do direito de acesso à justiça.
3 – Perceba-se que o regulamento que condiciona a inscrição do jogador Mateus não tem nenhum ponto de conexão com as normas de direito civil que qualificam os negócios jurídicos simulados.
4 – Porém, tanto a Liga como a FPF, enquanto associações de direito público, para decidirem sobre a inscrição (ou não) do jogador, estão obrigadas por Lei (art.º 83º do CPA) a conhecer as questões prévias que obstem à boa decisão sobre o mérito do acto administrativo.
5 – Perante este quadro, alegando o Gil Vicente a existência de um negócio simulado que prejudicava a decisão favorável sobre a inscrição do jogador, a liga ou a FPF deveriam ter reenviado o processo para o tribunal de trabalho territorialmente competente. Não o fizeram!
6 – Refira-se que é assim que sucede nos tribunais comuns: Se por exemplo, num tribunal administrativo for suscitada uma questão de direito civil que releve para uma boa decisão administrativa, o processo suspende-se enquanto essa questão interlocutória está a ser decidida num tribunal cível, sob pena da sentença/acordão ser considerado nula/o.

Recorde-se uma vez mais que o Gil Vicente pelo facto de ter abdicado do recurso aos tribunais comuns em questões “estritamente” desportivas, em nenhum momento abdicou do direito de acesso à justiça; até porque se o tivesse feito, à luz da Constituição, essa declaração ter-se-ia como não escrita, segundo a boa doutrina acerca do artº 18º da CRP – vide limitação voluntária e absoluta de direitos fundamentais.

III

Em suma, o conselho de justiça da FPF reconheceu-se incompetente para decidir sobre o contrato simulado – reconhecimento tácito de que não se tratava de uma questão desportiva, muito menos “estritamente” desportiva –, relegando para segundo plano essa questão.
Nestes termos, restaria ao Gil Vicente uma única possibilidade – uma vez que a deliberação do conselho de justiça da FPF revestia a forma de acto administrativo e porque havia uma questão que deveria ter sido conhecida antes de ser decidido o aspecto desportivo: a inscrição do jogador –, a impugnação do acto no tribunal administrativo competente.
Foi isto que o Gil Vicente fez: Garantiu o seu direito de acesso à justiça, uma vez que havia uma questão de natureza cível a decidir, sendo esta uma conditio sine et qua non para haver uma boa decisão “estritamente” desportiva.

IV

Sucintamente, podem abordar-se aspectos jurídicos de fundo subjacentes a todo este processo, que certamente o Gil Vicente e com propriedade poderá vir a invocar, designadamente:
1 - O direito de acesso a “um” tribunal, consagrado não só no catalogo de direitos fundamentais estabelecidos pela nossa constituição, como também na Declaração universal dos direitos do homem e na Carta Europeia;
Ainda que se reconhecesse (com reservas) que a Lei de bases do desporto limita esse direito. Cumprirá essa norma os critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade?
Afinal só se pode limitar um direito fundamental, tendo como contrapartida um interesse juridicamente e constitucionalmente relevante. Neste caso, qual?
2 – Não estará esse “suposto” direito desportivo vinculado à Constituição?
Ou será que deveríamos considerá-lo supra-constitucional?
3- Apesar de ser uma mera associação privada, criada ao abrigo do direito Suíço, poderá a FIFA e as suas regras ser incorporadas nos regulamentos desportivos e nos estatutos da liga, sem o cumprimento das regras de integração de normas internacionais no ordenamento jurídico Português prescritas na Constituição?
Note-se que os estatutos da FPF obrigam os associados a cumprirem as normas emanadas da FIFA. No entanto estas não se definem, nem tão pouco é definido os termos, o alcance e o sentido com que devem ser interpretadas.
O estatuto limita-se pois a efectuar uma remissão em bloco.
4 – Será que, caso o jogador Mateus jogasse como amador em Espanha há apenas 6 meses, estaria por isso impedido de ser inscrito na Liga?
E se não puder?
Não se poderá considerar essa regra da Liga, uma medida de efeito equivalente susceptível de afectar o Principio da livre circulação de trabalhadores consagrado no tratado das comunidades europeias?
Se assim for, estará essa afectação justificada nos termos desse tratado?
5 – Por último, o direito ao trabalho. Sobre a regra que impedia a inscrição do jogador Mateus, qual o seu escopo?
Será que essa norma visa estabelecer princípios organizativos, ou de igualdade de oportunidades entre os competidores, maximé garantir a verdade desportiva – razão fundamental da existência de normas “estritamente” desportivas”?
Visaria a norma garantir a verdade desportiva?
Caso contrário, deveremos pois considerá-la inadequada, desnecessária e desproporcional face à notória limitação de uma parte estruturante do núcleo do direito ao trabalho aplicável a este caso em concreto: o impedimento de competir.

V

Pois bem, parece óbvio que este caso deve ser resolvido a contento do Gil Vicente – independentemente das pressões da FIFA, da UEFA, ou sequer do Sr. Ahmadinejad.
Porque acerca das ameaças da FIFA, mesmo que se concretizem, sempre nos podemos interrogar sobre o seguinte:
Será que decisões unilaterais que não respeitam o que de mais estruturante existe num estado de direito – Principio do contraditório –, sem abertura de processo, nem audiência dos visados, deverão ser respeitadas?
Recordo-vos, a FIFA é apenas uma Associação Suiça, tal e qual o clube de caçadores da minha terra é uma associação Portuguesa!
E mesmo que venham a concretizarem-se as ameaças. Caso o faça – afectando todo o futebol Português – sendo este notoriamente de interesse público – não restará nenhum outro papel à FIFA, a não ser o de réu numa acção de responsabilidade civil intentada pelo Estado Português num Tribunal Cível Suíço.
Por outro lado, não violarão os estatutos da FIFA a Constituição Suiça?
Se sim, sempre se poderá requerer em qualquer Tribunal Suíço para que este decrete a sua dissolução.
Ainda quanto ás eventuais sanções. Sempre se poderá recorrer delas e/ou requerer a suspensão da sua eficácia. Aonde?...Num Tribunal Suíço!

Sobre a origem do mal…

Será que ninguém percebeu ainda que a FIFA concentra o monopólio do poder executivo, regulamentar e o ““alegadamente” poder desportivo-judicial”, do futebol mundial?
Será que, volvidos quase 250 anos sobre o advento do liberalismo, ainda ninguém percebeu que uma organização deste tipo não se encaixa nos estados de direito, universalmente considerados?
Pela primeira vez, nos últimos tempos, Portugal tem uma oportunidade de iluminar o trilho que o futebol mundial deve seguir!
E deixemo-nos de “miserabilismos” de nos considerarmos “coitadinhos”, de cedermos perante duvidosas certezas, tais como: «… Se todos os outros países não interrogam estas questões, porquê nós?...»
Eu digo-vos porquê: Porque hoje Portugal é uma potência do futebol mundial e também isto não se pode escamotear.

Entenda-se, as instituições portuguesas envolvidas até ao momento neste caso, se exceptuarmos algumas peripécias no seio da Liga, têm agido correctamente, tentando desesperadamente procurar a LEI, farol da justiça. Mas todos ficaram confusos, muito confusos, quando se viram compelidos a contrabalançar o direito com as regras de uma organização “para-internacional” de matriz absolutista, e nessa, não há lei, nem direito, e muito menos justiça…

Sobre a resolução do problema!

O governo exerce tutela de legalidade sobre a FPF.
Deverá por isso o membro do governo responsável pela área do desporto, revogar todos os actos administrativos supervenientes à deliberação do conselho de justiça da FPF em que nega provimento ao recurso do Gil Vicente e simultaneamente reconhece a incompetência para decidir em matéria de contratos de trabalho simulados.
Este acto deverá por isso ser reformado, reenviando o conselho de justiça o processo para o tribunal de trabalho territorialmente competente para que este decida, se houve ou não simulação de contrato.
Neste contexto, o recurso do Gil Vicente para o TAF de Braga deixará de fazer sentido, não obstante manter-se-á válida a decisão desse tribunal no tocante à inscrição provisória na liga do jogador Mateus.
Teríamos então dois cenários possíveis:

Cenário 1 – Houve contrato simulado. Tudo como dantes, isto é o Gil Vicente continua na BWIN LIGA e a inscrição do jogador converte-se em definitiva.

Cenário 2 – Não houve contrato simulado. Logo a inscrição provisória do jogador deixaria de produzir efeitos. No entanto, essa inscrição decorreu de uma decisão do tribunal, provisória é certo, mas que foi decretada por haver uma boa aparência do direito; como tal, ao Gil Vicente nada lhe deve ser imputado. Isto se considerarmos as regras do direito civil.
Porquanto a reposição da situação anterior à decisão da inscrição provisória é impossível, e seria inadmissível em direito, o Gil Vicente perder os pontos em que o jogador actuou por estar inscrito por ordem do tribunal.
Evidentemente, seria o Gil Vicente a permanecer na BWIN LIGA.

Consequentemente, revogada pelo Secretário de Estado do Desporto, a decisão que condena o Gil Vicente a descer de divisão, o campeonato deve de imediato prosseguir com a participação do Gil Vicente.
Recorde-se, do que ficou exposto, este clube nunca violou nenhum regulamento desportivo.
Sobre o atraso do campeonato. Em termos factuais não releva uma vez que este ano o campeonato poderá disputar-se até meados de Junho sem colidir com nenhuma outra competição desportiva relevante. E para agilizar esse processo aqui sim, poderá invocar-se o interesse público para remover eventuais obstáculos.
Sobre a decisão do contrato de trabalho. Obviamente que deverá ser célere mas creio que a magistratura estará ciente disso.

In pejus

Como já se disse, as peripécias no seio da Liga de clubes. Espero que de futuro as relações orgânicas, institucionais e processuais entre o estado administração, a FPF e a Liga possam ficar devidamente clarificadas pela via legislativa e regulamentar: Tem que se perceber que modelo jurídico se pretende ter no futebol Português!

Fará sentido, o Sr. Gilberto Madaíl – que nem sequer é jurista – reunir-se em Zurique com a FIFA no propósito de reportar a complexidade do “caso Mateus”?
Em tempos entrámos em Roma de forma magistral, a fim de mostrar ao Papa as “maravilhas” provenientes dos nossos descobrimentos marítimos.
O Sr. Madaíl poderia perfeitamente ter-se feito acompanhar por séquito de jurisconsultos para esclarecerem a FIFA sobre a realidade jurídica dos factos. Porque em Portugal – felizmente – temos muitos e dos bons.



Alberto Cancelino